Nova Juventude
Alguém se importa de me explicar?
" Decididamente, os dons estão muito mal distribuídos entre as pessoas. Durante muito tempo acreditei que todos tínhamos o mesmo número de qualidades, variando apenas em medida. Assim, uns seriam mais musicais, outros mais robustos, outros mais rápidos, outros mais simpáticos, outros mais amáveis, outros mais inteligentes, outros mais românticos, outros mais boas pessoas.
Descobri, no entanto, que não fui dotada de nenhuma dessas características em quantidade suficiente. Em particular, no que agora me interessa, não fui, claramente, beneficiada com o dom da inteligência, questão que me assusta particularmente e que não sei como hei-de disfarçar daqui para a frente. Foi uma descoberta que fiz após algum tempo a reflectir, com empenho genuíno, nos argumentos apresentados pelos defensores do "sim" no referendo do aborto – em suma, descobri que não percebo o que querem dizer com eles.
Vejamos.
Os defensores do aborto livre até às 10 semanas de gestação dizem que não querem ver mais mulheres presas ou julgadas. Não percebo! Eles sabem, com certeza, que não há nenhuma mulher presa ou julgada por ter abortado durante esse prazo; sabem, igualmente, que a lei que defendem permitirá que elas sejam presas e julgadas se praticarem o aborto às 10 semanas e 1 dia; e sabem, por fim, que mesmo a questão de ele ter sido praticado até às 10 semanas é um dado de facto que pode ser sujeito a prova (por conseguinte, será ainda possível que uma mulher que tenha praticado um aborto antes desse tempo venha a ser submetida a julgamento, embora venha, a final, a não ser condenada). O que é que querem, então, dizer com isso de não as quererem ver presas ou julgadas?
Os defensores do aborto livre dizem, ainda, que não querem que as mulheres pobres sofram o aborto clandestino porque não podem ir a Espanha abortar. Também não percebo! Eles sabem, com certeza, que o aborto livre não as tirará do estado de pobreza. As mulheres pobres poderão abortar de forma higiénica (higiénica para elas, não para o feto, entenda-se), mas, quando saírem do hospital, continuarão a ser pobres, desempregadas, maltratadas. Os defensores do aborto sabem, também, que caberá a toda a gente (incluindo as mesmas mulheres pobres) pagar com os seus impostos o aborto livre; e sabem, por fim, que as mulheres pobres, que não podem recorrer a médicos ou hospitais privados para ser tratadas das suas enfermidades em tempo útil (incluindo aquelas que, ironicamente, aguardam tratamentos de fertilidade) terão que esperar ainda mais tempo nas listas de espera do sistema nacional de saúde, porque há mulheres que querem abortar e que terão prioridade, devendo esperar no máximo um mês e meio para o poderem fazer (é o tempo que vai desde as 5 semanas em que descobrem que esperam uma criança e as 10 semanas de prazo para abortarem). Se sabem isso tudo, então a quais mulheres pobres se referem? Não percebo...
Os defensores do aborto livre defendem a diferença entre despenalização e liberalização, afirmando que o que está em causa, neste referendo, é a primeira (pressupondo eu que assumem, por conseguinte, que o aborto poderia continuar a ser crime – e a mulher que o pratica continua a ser criminosa – desde que sem pena quando seja praticado até às dez semanas) e não a segunda. Continuo sem perceber! Eles conhecem, com certeza (porque muitos apoiaram a descriminalização do consumo de droga), a diferença entre despenalizar (ou descriminalizar, consoante os casos) e liberalizar! Pela primeira, a conduta deixa de ser punida (ou criminosa, consoante os casos) mas pode continuar a ser ilícita; pela segunda, a conduta passa a ser apoiada pelo Estado – e não é isso que significa a "realização em estabelecimento de saúde legalmente autorizado"? Não percebo. Defenderão os "sins" um... "crime liberalizado"?!
Os defensores do aborto livre dizem que ninguém tem o direito de escolher por outra pessoa. Não percebo! Ao defenderem o sim não estarão a escolher pela criança? Se dessem às crianças hipótese de escolha, talvez muitas escolhessem dar a vida pela Mãe, como eu estaria disposta a dar pela minha se houvesse oportunidade para o fazer... Mas gostava de ser eu, orgulhosamente , a decidir! Não havendo hipótese de perguntarem ao bébé (pode sempre esperar-se que ele chegue à maioridade para poder decidir livremente...), por que é que não se pode escolher... os dois? Não percebo.
Os defensores do aborto livre dizem que as "razões morais" de uns não podem sobrepor-se às "razões morais" de outros. Que cena!, também não percebo! Então mas as leis (todas as leis) não traduzem escolhas que se consideram preferíveis às alternativas? Então as leis (todas leis) não optam, de entre os vários interesses que é preciso acautelar, por aquele que merece mais protecção? Por isso não percebo! Sempre ouvi dizer que a liberdade de uns encontra o seu limite na liberdade dos outros. Por isso é que, apesar de eu precisar de dinheiro para sustentar a minha Família, eu não o devo procurar por meios ilícitos – por isso, a lei proíbe o roubo, a corrupção e o branqueamento de capitais. Por isso é que, apesar de aquela pessoa ser chata, porcalhona, quezilenta, ou me ter chamado nomes, eu não lhe posso bater – por isso, a lei proíbe as ofensas à integridade física. Mas a lei também sabe que eu não sou nenhuma heroína (bem gostava, mas é outro defeito meu...), e que a minha paciência tem limites (é outro...). Por isso, a lei e a sociedade desculpam-me se eu tiver mesmo que roubar para alimentar a minha Família, ou se tiver que dar uma palmada a alguém para defender a minha honra. É isto, não é? E é isto que vem na lei penal acerca do aborto, não é? Que ele, sendo mau, pode ser desculpável nalguns casos? Ora, se os defensores do aborto sabem que as leis são mesmo assim...
Os defensores do aborto livre dizem que o número de abortos não vai aumentar se ele for liberalizado. Não percebo... Eles sabem, porque, como eu, leram as estatísticas, que, desde que foi aprovada a venda da pílula do dia seguinte, o seu consumo tem aumentado todos os dias (pressupondo eu que diminuindo, ou, pelo menos, não aumentando os métodos de anticoncepção de qualquer tipo). Se existe a pílula do dia seguinte, não é tão premente a contracepção; se houver aborto, menos ainda ela será necessária. Não é um dado de inteligência (só por isso é que eu consigo percebê-lo), é um dado de experiência: quanto mais tempo me dão para executar uma tarefa, mais tarde eu a concluo. Agora, de repente, até me lembrei de outra questão (é próprio das pessoas mentalmente desorganizadas isso acontecer): se a liberalização do aborto coloca em segundo plano a contracepção, isso não aumentará também o risco de transmissão das doenças sexualmente transmissíveis?
Os defensores do aborto livre dizem que matar a criança até pode ser um acto de amor, atentas as circunstâncias socio-económicas em que ela vai nascer, e, pior que tudo, atendendo ao facto de ela vir a poder crescer sem amor. Não percebo! Será que, além de terem ficado com toda a minha inteligência ainda foram beneficiados com o dom da futurologia (se assim for, podem indicar-me se eu daqui a 5 anos serei feliz, se faz favor?)? Eu pensava que não havia nenhuma causa humana de felicidade ou de infelicidade objectiva. Sei, por experiência própria, que a felicidade de uns pode ser infelicidade para outros, e que se encontram motivos de felicidade nas condições mais adversas. Mas, sobretudo, tenho muita dificuldade – outra vez esta minha tacanhez – em dizer o que é felicidade para os outros.
Os defensores do aborto livre dizem que a criança no seio da Mãe não é ainda uma pessoa igual às pessoas já nascidas. Isto acho que já percebo um bocadinho melhor. Em tempos dizia-se que não era sequer uma vida humana, o que me custava muito a perceber, porque eu lia nos livros que, nessa altura, o bébé já tinha impressões digitais, sistema nervoso central, informação genética própria e irrepetível. Ainda bem que agora já ninguém duvida que seja uma vida humana, se não eu teria muita dificuldade em perceber o que é uma vida humana, e a minha cabeça já está cansada de tanta informação. Mas que "não é pessoa igual às outras"? Pois não. Não é. A minha sobrinha recém-nascida também não tem nada a ver com o seu bisavô ou comigo própria. Aliás, as diferenças que nos separam são infinitamente maiores do que as que separam a minha sobrinha recém-nascida de um embrião de 10 semanas. Não percebo. Isso é mau?
Em suma, não percebo. Não consigo perceber, por muito que me esforce. Já li e reli todos os argumentos, já os discuti, já os virei e chocalhei de pernas para o ar... e continuo na mesma. Claramente a inteligência não é o meu forte. Como não me tenho igualmente por boa desportista, boa artista, ou simplesmente boa pessoa, estou cheia de curiosidade de saber qual o dom que os substitui... "
(e-mail escrito por Inês Quadros Fonseca)
" Decididamente, os dons estão muito mal distribuídos entre as pessoas. Durante muito tempo acreditei que todos tínhamos o mesmo número de qualidades, variando apenas em medida. Assim, uns seriam mais musicais, outros mais robustos, outros mais rápidos, outros mais simpáticos, outros mais amáveis, outros mais inteligentes, outros mais românticos, outros mais boas pessoas.
Descobri, no entanto, que não fui dotada de nenhuma dessas características em quantidade suficiente. Em particular, no que agora me interessa, não fui, claramente, beneficiada com o dom da inteligência, questão que me assusta particularmente e que não sei como hei-de disfarçar daqui para a frente. Foi uma descoberta que fiz após algum tempo a reflectir, com empenho genuíno, nos argumentos apresentados pelos defensores do "sim" no referendo do aborto – em suma, descobri que não percebo o que querem dizer com eles.
Vejamos.
Os defensores do aborto livre até às 10 semanas de gestação dizem que não querem ver mais mulheres presas ou julgadas. Não percebo! Eles sabem, com certeza, que não há nenhuma mulher presa ou julgada por ter abortado durante esse prazo; sabem, igualmente, que a lei que defendem permitirá que elas sejam presas e julgadas se praticarem o aborto às 10 semanas e 1 dia; e sabem, por fim, que mesmo a questão de ele ter sido praticado até às 10 semanas é um dado de facto que pode ser sujeito a prova (por conseguinte, será ainda possível que uma mulher que tenha praticado um aborto antes desse tempo venha a ser submetida a julgamento, embora venha, a final, a não ser condenada). O que é que querem, então, dizer com isso de não as quererem ver presas ou julgadas?
Os defensores do aborto livre dizem, ainda, que não querem que as mulheres pobres sofram o aborto clandestino porque não podem ir a Espanha abortar. Também não percebo! Eles sabem, com certeza, que o aborto livre não as tirará do estado de pobreza. As mulheres pobres poderão abortar de forma higiénica (higiénica para elas, não para o feto, entenda-se), mas, quando saírem do hospital, continuarão a ser pobres, desempregadas, maltratadas. Os defensores do aborto sabem, também, que caberá a toda a gente (incluindo as mesmas mulheres pobres) pagar com os seus impostos o aborto livre; e sabem, por fim, que as mulheres pobres, que não podem recorrer a médicos ou hospitais privados para ser tratadas das suas enfermidades em tempo útil (incluindo aquelas que, ironicamente, aguardam tratamentos de fertilidade) terão que esperar ainda mais tempo nas listas de espera do sistema nacional de saúde, porque há mulheres que querem abortar e que terão prioridade, devendo esperar no máximo um mês e meio para o poderem fazer (é o tempo que vai desde as 5 semanas em que descobrem que esperam uma criança e as 10 semanas de prazo para abortarem). Se sabem isso tudo, então a quais mulheres pobres se referem? Não percebo...
Os defensores do aborto livre defendem a diferença entre despenalização e liberalização, afirmando que o que está em causa, neste referendo, é a primeira (pressupondo eu que assumem, por conseguinte, que o aborto poderia continuar a ser crime – e a mulher que o pratica continua a ser criminosa – desde que sem pena quando seja praticado até às dez semanas) e não a segunda. Continuo sem perceber! Eles conhecem, com certeza (porque muitos apoiaram a descriminalização do consumo de droga), a diferença entre despenalizar (ou descriminalizar, consoante os casos) e liberalizar! Pela primeira, a conduta deixa de ser punida (ou criminosa, consoante os casos) mas pode continuar a ser ilícita; pela segunda, a conduta passa a ser apoiada pelo Estado – e não é isso que significa a "realização em estabelecimento de saúde legalmente autorizado"? Não percebo. Defenderão os "sins" um... "crime liberalizado"?!
Os defensores do aborto livre dizem que ninguém tem o direito de escolher por outra pessoa. Não percebo! Ao defenderem o sim não estarão a escolher pela criança? Se dessem às crianças hipótese de escolha, talvez muitas escolhessem dar a vida pela Mãe, como eu estaria disposta a dar pela minha se houvesse oportunidade para o fazer... Mas gostava de ser eu, orgulhosamente , a decidir! Não havendo hipótese de perguntarem ao bébé (pode sempre esperar-se que ele chegue à maioridade para poder decidir livremente...), por que é que não se pode escolher... os dois? Não percebo.
Os defensores do aborto livre dizem que as "razões morais" de uns não podem sobrepor-se às "razões morais" de outros. Que cena!, também não percebo! Então mas as leis (todas as leis) não traduzem escolhas que se consideram preferíveis às alternativas? Então as leis (todas leis) não optam, de entre os vários interesses que é preciso acautelar, por aquele que merece mais protecção? Por isso não percebo! Sempre ouvi dizer que a liberdade de uns encontra o seu limite na liberdade dos outros. Por isso é que, apesar de eu precisar de dinheiro para sustentar a minha Família, eu não o devo procurar por meios ilícitos – por isso, a lei proíbe o roubo, a corrupção e o branqueamento de capitais. Por isso é que, apesar de aquela pessoa ser chata, porcalhona, quezilenta, ou me ter chamado nomes, eu não lhe posso bater – por isso, a lei proíbe as ofensas à integridade física. Mas a lei também sabe que eu não sou nenhuma heroína (bem gostava, mas é outro defeito meu...), e que a minha paciência tem limites (é outro...). Por isso, a lei e a sociedade desculpam-me se eu tiver mesmo que roubar para alimentar a minha Família, ou se tiver que dar uma palmada a alguém para defender a minha honra. É isto, não é? E é isto que vem na lei penal acerca do aborto, não é? Que ele, sendo mau, pode ser desculpável nalguns casos? Ora, se os defensores do aborto sabem que as leis são mesmo assim...
Os defensores do aborto livre dizem que o número de abortos não vai aumentar se ele for liberalizado. Não percebo... Eles sabem, porque, como eu, leram as estatísticas, que, desde que foi aprovada a venda da pílula do dia seguinte, o seu consumo tem aumentado todos os dias (pressupondo eu que diminuindo, ou, pelo menos, não aumentando os métodos de anticoncepção de qualquer tipo). Se existe a pílula do dia seguinte, não é tão premente a contracepção; se houver aborto, menos ainda ela será necessária. Não é um dado de inteligência (só por isso é que eu consigo percebê-lo), é um dado de experiência: quanto mais tempo me dão para executar uma tarefa, mais tarde eu a concluo. Agora, de repente, até me lembrei de outra questão (é próprio das pessoas mentalmente desorganizadas isso acontecer): se a liberalização do aborto coloca em segundo plano a contracepção, isso não aumentará também o risco de transmissão das doenças sexualmente transmissíveis?
Os defensores do aborto livre dizem que matar a criança até pode ser um acto de amor, atentas as circunstâncias socio-económicas em que ela vai nascer, e, pior que tudo, atendendo ao facto de ela vir a poder crescer sem amor. Não percebo! Será que, além de terem ficado com toda a minha inteligência ainda foram beneficiados com o dom da futurologia (se assim for, podem indicar-me se eu daqui a 5 anos serei feliz, se faz favor?)? Eu pensava que não havia nenhuma causa humana de felicidade ou de infelicidade objectiva. Sei, por experiência própria, que a felicidade de uns pode ser infelicidade para outros, e que se encontram motivos de felicidade nas condições mais adversas. Mas, sobretudo, tenho muita dificuldade – outra vez esta minha tacanhez – em dizer o que é felicidade para os outros.
Os defensores do aborto livre dizem que a criança no seio da Mãe não é ainda uma pessoa igual às pessoas já nascidas. Isto acho que já percebo um bocadinho melhor. Em tempos dizia-se que não era sequer uma vida humana, o que me custava muito a perceber, porque eu lia nos livros que, nessa altura, o bébé já tinha impressões digitais, sistema nervoso central, informação genética própria e irrepetível. Ainda bem que agora já ninguém duvida que seja uma vida humana, se não eu teria muita dificuldade em perceber o que é uma vida humana, e a minha cabeça já está cansada de tanta informação. Mas que "não é pessoa igual às outras"? Pois não. Não é. A minha sobrinha recém-nascida também não tem nada a ver com o seu bisavô ou comigo própria. Aliás, as diferenças que nos separam são infinitamente maiores do que as que separam a minha sobrinha recém-nascida de um embrião de 10 semanas. Não percebo. Isso é mau?
Em suma, não percebo. Não consigo perceber, por muito que me esforce. Já li e reli todos os argumentos, já os discuti, já os virei e chocalhei de pernas para o ar... e continuo na mesma. Claramente a inteligência não é o meu forte. Como não me tenho igualmente por boa desportista, boa artista, ou simplesmente boa pessoa, estou cheia de curiosidade de saber qual o dom que os substitui... "
(e-mail escrito por Inês Quadros Fonseca)
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